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DISTRATO DO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA

Publicado em: 10/11/2016

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A compra da casa própria continua sendo um sonho brasileiro. A baixa renda da população brasileira e as constantes oscilações das políticas de crédito e o estímulo do Governo à construção civil são causas importantes das dificuldades existentes para a aquisição do imóvel. Tudo somado aos problemas econômicos e sociais de um grande país em desenvolvimento levam a um déficit habitacional resistente a todas as políticas implementadas nos últimos anos.

É verdade que alguma melhora nesse quadro ocorreu, especialmente em relação às moradias populares. Todavia, de acordo com estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas para o Sinduscon-SP, embora o programa “Minha Casa, Minha Vida” tenha reduzido, em cinco anos, o déficit habitacional do país em 8%, o número de famílias de baixa renda sem habitação adequada continuará crescendo, estimando-se em R$ 76 bilhões ao ano o volume de recursos necessários para atender um milhão de famílias ao ano. Em 2012 o déficit habitacional das famílias de baixa renda foi calculado em 5,2 milhões (fonte Jornal Valor por Juliana Elias: http://www.valor.com.br/brasil/3733244/fgv-brasil-precisa-de-r-76-bi-ao-ano-para-zerar-deficit-habitacional). Esses números são suficientes para indicar a dimensão do problema que representa hoje para a sociedade brasileira a questão da moradia.

Pressionadas pela necessidade, famílias empenharam todas as suas economias para a compra de imóveis nos últimos anos, motivadas pelo aumento da oferta e as facilidades de crédito que em certo momento o mercado apresentou. Ocorre que a economia brasileira mudou substancialmente e os adquirentes de imóveis perderam renda e emprego, tornando o sonho da casa própria um pesadelo para quem se aventurou em negócios imobiliários. Decorre desta dramática situação uma patologia jurídica que afeta a economia das empresas do setor da construção civil, com reflexos diretos nos Tribunais, que é o inadimplemento dos contratos.

Todos sabemos que entre os imóveis mais procurados nos grandes centros urbanos estão os apartamentos por construir e sobre os negócios desses imóveis é que tem se manifestado mais fortemente o inadimplemento, que levou as construtoras e incorporadoras a pedir a resolução dos contratos e aos próprios adquirentes a procurar desfazer esses negócios. Em muitos casos as partes chegaram a fazer o distrato.

No entanto, temos visto chegar ao Tribunal muitas causas envolvendo o distrato. São adquirentes que não aceitam as perdas que sofreram quando assinaram o acordo de desfazimento do contrato, levando o Tribunal a decidir sobre os efeitos desse negócio.

No direito brasileiro se verifica alguma incerteza sobre o direito das partes nessas relações de compromisso de compra e venda de imóveis futuros. De um lado o Código de Defesa do Consumidor estabelece no art. 53 que “nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”. E de outro lado o Código Civil é claro ao afirmar no art. 389 que “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos”.

Portanto se ao adquirente é assegurado não perder tudo o que pagou, ao compromissário vendedor é garantida a reparação dos danos causados pelo inadimplemento culposo. Aqui estão os elementos da equação que deve ser resolvida no distrato. Integra essa equação a natureza cogente e a ordem pública inerente às disposições do Código de Defesa do Consumidor, que prevalece sobre a própria vontade manifestada pelo adquirente nas relações de consumo.

O distrato é um acordo de vontades dirigido a desfazer o contrato e está previsto expressamente no art. 472 do Código Civil. A mesma vontade que atuou para formar o contrato, pode agora atuar para desfazer o negócio. É expressão da autonomia privada. Exige o Código Civil somente que o distrato se faça pela mesma forma exigida para o contrato. É uma espécie de simetria relativa de forma que o Código Civil adotou.

É necessário para o distrato que se observem os mesmos requisitos de validade dos negócios jurídicos em geral, especialmente a capacidade e o poder de disposição patrimonial das partes. Outro requisito de validade do distrato, que se mostra evidente, é que ele se faça pelas mesmas partes do contrato.

O distrato não pode ser admitido se o contrato já se encontra cumprido. Nesse caso voltar a situação anterior representa um novo negócio, como se fora uma venda regressiva, de forma que de distrato não se trata.

Os efeitos produzidos pelo distrato são “ex nunc”, valendo para o futuro, mas as partes podem lhe dar efeitos retroativos, desde que respeitados os direitos de terceiros.

A validade do distrato também está ligada diretamente ao cumprimento das normas de ordem pública, à boa-fé objetiva, à função social do contrato e ao equilíbrio nas relações. É necessário, portanto, conciliar o interesse de ambas as partes no desfazimento do negócio.

Em geral os contratos de compromisso de compra e venda de unidades futuras estabelecem cláusulas penais para o adquirente inadimplente. Ao desfazer esses contratos os compromissários vendedores pretendem fazer incidir essas disposições penais. Algumas delas são muito severas com o adquirente e mesmo aceitas podem ser revistas pelos Tribunais, que têm efetivamente decidido sobre a validade das cláusulas penais e do próprio distrato nas relações de consumo.

É comum o argumento em favor da confirmação do distrato de que ele representa a vontade das partes, que não pode se arrepender. Sucede que o adquirente é consumidor nessa relação e, portanto, reconhecido pelo CDC como vulnerável, de forma que as obrigações e disposições que assume estão sujeitas ao regulamento legal desses contratos, definido pelo CDC, especialmente no rol de cláusulas abusivas previsto no seu art. 51. Entre as disposições abusivas podem ser lembradas aquelas que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga e que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

Diante do que estabelece o Código de Defesa do Consumidor os Tribunais estão autorizados e legitimados a rever o distrato e conferir validade somente àquelas disposições que se encontram de acordo com a Lei.

É certo que há entendimento no sentido de que o direito é disponível e que não há limite à retenção de parcelas do que foi pago. É o que se afirmou recentemente em julgado do Tribunal de São Paulo de relatoria do Desembargador Beretta da Silveira, cuja ementa diz o seguinte: “Compromisso de Compra e Venda. Rescisão extrajudicial. Pretensões de declaração de nulidade de cláusulas contratuais, de devolução, em dobro, das quantias pagas e de indenização por dano mora. Desistência do autor compromissário comprador, que não conseguiu financiamento, e recebeu, no distrato, quantia equivalente a cerca de 50% dos valores que havia pago. Pedidos indevidos. Tratando-se de direito disponível, não havendo lei de ordem pública a impor determinado percentual em devolução das quantias pagas, o autor-apelante desistiu do negócio, recebendo determinado valor em restituição e dando plena e irrevogável quitação. Não tem, portanto, direito de pretender receber mais, ao velado pensamento de que recebeu pouco. Ação improcedente. Sentença mantida. Recursos Desprovido.” [Ap. nº 1040796-65.2014.8.26.0506, de 08/04/2016]

O Tribunal de São Paulo, em outro julgado, relatado pelo Desembargador Salles Rossi, reconheceu, ao contrário, a possibilidade de revisão do distrato: “Restituição de valores pagos – Distrato realizado. Possibilidade de revisão dos valores devolvidos. Matéria de ordem pública aquela referente ao reconhecimento de cláusulas abusivas que coloquem o consumidor em situação de extrema desvantagem – Sentença que determinou a restituição de mais 30% dos valores pagos. Majoração para que sejam devolvidos, além da metade dos valores pagos em distrato, mais 40%, impondo uma retenção de 10% em favor da ré, para recompor as despesas administrativas e de propaganda, visto que poderá novamente negociar o imóvel Juros de mora que devem ser contados apenas da citação, mantida a correção monetária do distrato Honorários advocatícios fixados em 15% sobre o montante a ser restituído – Sentença reformada – Recursos parcialmente providos.” [Ap. n. 1012356-89.2014.8.26.0011, de 29/03/2016]

Afirmando este controle judicial sobre o distrato decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça:

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DISTRATO. DEVOLUÇÃO ÍNFIMA DO VALOR ADIMPLIDO. ABUSIVIDADE. RETENÇÃO DE PERCENTUAL SOBRE O VALOR PAGO. SÚMULA 7 DO STJ. 1. “O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato” (art. 472 do Código Civil), o que significa que a resilição bilateral nada mais é que um novo contrato, cujo teor é, simultaneamente, igual e oposto ao do contrato primitivo. Assim, o fato de que o distrato pressupõe um contrato anterior não lhe desfigura a natureza contratual, cuja característica principal é a convergência de vontades. Por isso, não parece razoável a contraposição no sentido de que somente disposições contratuais são passíveis de anulação em virtude de sua abusividade, uma vez que “‘onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito”. 2. A lei consumerista coíbe a cláusula de decaimento que determine a retenção do valor integral ou substancial das prestações pagas por consubstanciar vantagem exagerada do incorporador. 3. Não obstante, é justo e razoável admitir-se a retenção, pelo vendedor, de parte das prestações pagas como forma de indenizá-lo pelos prejuízos suportados, notadamente as despesas administrativas realizadas com a divulgação, comercialização e corretagem, além do pagamento de tributos e taxas incidentes sobre o imóvel, e a eventual utilização do bem pelo comprador. 4. No caso, o Tribunal a quo concluiu, de forma escorreita, que o distrato deve render ao promitente comprador o direito à percepção das parcelas pagas. Outrossim, examinando o contexto fático-probatório dos autos, entendeu que a retenção de 15% sobre o valor devido seria suficiente para indenizar a construtora pelos prejuízos oriundos da resilição contratual. Incidência da Súmula 7 do STJ. 5. Recurso especial não provido” [REsp n. 1132943 / PE, rel. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 27/09/2013].

Ainda persiste nos meios sociais e jurídicos uma resistência à ideia de que nos contratos, especialmente naqueles que sofrem direta regulação da ordem jurídica, a vontade das partes nem sempre prevalece. Recorre-se frequentemente àquela velha máxima – pacta sunt servanda – para justificar o cumprimento do que foi contratado, custe o que custar. Esse pensamento é decorrente da herança liberal que recebemos e dos Códigos oitocentistas que reconheciam máximo valor à vontade e força coercitiva absoluta às declarações das partes. A justiça do contrato recaia sobre a manifestação de vontade e não sobre o conteúdo das suas disposições.

A passagem do Estado Liberal ao Estado Social promoveu forte impacto nas relações contratuais de forma a impor cada vez mais a intervenção do Estado nas relações privadas para promover a igualdade e equilíbrio dessas relações. A justiça contratual passou a outro campo de observação, o que levou o grande economista Keynes a afirmar, em trabalho que veio a público em 1926 [“O Fim do Laissez-Faire”, reproduzido pela Editora Ática in “Economia”], que não há nenhum direito contratual que se possa dizer absoluto.

Não é o caso de generalizar a afirmação do grande economista e negar valor ao que foi contratado. Não é isso efetivamente que afirma Keynes no artigo indicado. A afirmação em referência diz respeito à mudança de paradigmas no direito contratual verificada a partir do século passado no sentido de que prevalece sobre a vontade das partes o interesse público. Assim, diante do vulnerável – consumidor – não pode se surpreender o contratante com a solução que dê prevalência à Lei sobre a vontade manifestada no contrato. Essa é a base do moderno direito contratual que distingue os contratos paritários dos contratos não paritários.

A questão que se coloca, portanto, assentado que o Tribunal pode rever o distrato, é saber quais são as perdas e danos que, em caso de inadimplemento dos compromissos de unidades por construir, podem ser exigidas dos adquirentes.

Há em curso Projeto de Lei do Senado nº 774/2015 de iniciativa do Senador Romero Jucá que procura disciplinar os efeitos da “resilição unilateral” e “inadimplemento” do adquirente, excluindo-se qualquer disciplina para o “distrato”. Entendeu o Projeto em referência que no distrato vale o que as partes convencionaram. Com o devido respeito, ignora-se o entendimento firmado no sentido de que o distrato está sujeito a controle judicial. Melhor seria que o Projeto tivesse incluído na disciplina proposta também o distrato. Há proposta de emenda nesse sentido feita no Senado e o projeto merece toda a atenção dos envolvidos.

É sabido que para a realização da venda é necessário o serviço do corretor e outros profissionais. Há uma divergência na jurisprudência de São Paulo sobre a responsabilidade do pagamento dessas despesas e hoje a matéria está em julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça em rito dos recursos repetitivos. A tendência mais forte em julgamento de primeiro grau é no sentido de reconhecer que cabe ao vendedor este pagamento, que não pode ser repassado ao adquirente, entendimento que tem reflexo na maioria dos julgados do Tribunal de São Paulo.

Em caso de distrato esses valores pagos a título de corretagem e serviço de assistência técnica imobiliária (SATI) ganham importância. Se o adquirente pagou essa verba ele terá a sua restituição ? Se o pagamento foi feito pelo compromissário vendedor ele poderá considerar esse pagamento como perdas e danos e deduzir essa quantia da restituição que é devida ao adquirente ?

Há uma tendência nos Tribunais em considerar que o pagamento feito a título de corretagem e SATI faz parte do preço e deverá ser considerado na restituição. Todavia, as perdas e danos devem ser compensadas em razão do inadimplemento do adquirente.

Outras verbas são deduzidas frequentemente no distrato. São despesas administrativas, de publicidade, e impostos incidentes sobre o negócio. Também há dúvida sobre a regularidade dessa retenção.

A solução que tem sido admitida nos Tribunais é a simples retenção de um percentual de tudo que foi pago. Esse percentual se situa entre 10% e 25%. O que é considerado normalmente na fixação da retenção é o total do valor pago e o prejuízo que sofreu o compromissário vendedor. A partir desse exame o Tribunal julga casuisticamente a retenção.

Embora a jurisprudência formada seja no sentido de exame casuístico dos efeitos do distrato, resilição e resolução dos contratos, o mencionado Projeto de Lei do Senado admite cláusula penal de até 25% de retenção da quantia paga e ainda imputa ao adquirente o pagamento de corretagem (5%), ocupação do imóvel e outras despesas, cumulativamente. Neste ponto, a solução proposta no Projeto de Lei destoa da jurisprudência formada, como bem foi apontado pela Senadora Marta Suplicy em voto em separado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que propõe cláusula penal limitada a 10% do que foi pago em vista da cumulação de indenização pela corretagem, ocupação e outros danos sofridos pelo incorporador. Melhor seria que a Lei apenas fixasse limites, deixando ao exame judicial ajustar os excessos em face do caso concreto.

Infelizmente os processos que trazem essa questão relativa ao distrato não são instruídos adequadamente. Faltam esclarecimentos e provas a respeito do dano causado pelo inadimplemento, dificultando o julgamento pelo Magistrado do valor correto da retenção aplicada no distrato.

Nota-se também que muitas vezes são mal elaborados os documentos que instrumentalizam o distrato, deixando de indicar com precisão o quanto foi pago e o que efetivamente é objeto de retenção. Não se deve olvidar que ao consumidor é assegurado o direito à informação, o que também deve ser observado no distrato. O adquirente tem direito a ser informado sobre o que se propõe a deduzir no distrato e a razão que justifica essa retenção para que ela não seja reputada abusiva. Melhor que a informação seja lançada no próprio instrumento do distrato.

Outra importante questão diz respeito ao tempo de pagamento da restituição. Entendo que, não havendo abuso, é razoável aceitar que as partes convencionem o pagamento em parcelas, muito embora a jurisprudência dominante se mostre refratária a esta solução. Caso as partes não possam acordar sobre esse ponto, a solução só pode ser pela restituição imediata. Registro que a esse respeito o referido Projeto de Lei prevê carência e parcelamento para a restituição. No meu modo de ver essa disposição representa uma vantagem excessiva que o Código de Defesa do Consumidor não autoriza.

Nesse momento de crise econômica, quando o inadimplemento do contrato ganha dimensão epidêmica, essas relações contratuais tendem a se judicializar e é necessário encontrar o ponto de equilíbrio dos interesses em jogo para assegurar o direito de cada uma das partes, o que exige de ambas a boa-fé e antes de tudo bom senso.

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